(571-594)
Capítulo Segundo - Creio em Jesus Cristo, Filho Único de Deus
Artigo 4 - «Jesus Cristo padeceu sob Pôncio Pilatos
foi Crucificado, Morto e Sepultado»
571. O mistério pascal da cruz e ressurreição de Cristo está no centro da Boa-Nova que os Apóstolos, e depois deles a Igreja, devem anunciar ao mundo. O desígnio salvífico de Deus cumpriu-se de «una vez por todas» (Heb 9, 26) pela morte redentora do seu Filho Jesus Cristo.
572. A Igreja permanece fiel à «interpretação de todas as Escrituras» dada pelo próprio Jesus, tanto antes como depois da sua Páscoa (336) «Não tinha o Messias de sofrer tudo isto, para entrar na sua glória?» (Lc 24, 26). Os sofrimentos de Jesus tomaram a sua forma histórica concreta, pelo fato de Ele ter sido «rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas» (Mc 8, 31), que «O entregaram aos pagãos para ser escarnecido, flagelado e crucificado» (Mt 20, 19).
573. A fé pode, portanto, esforçar-se por investigar as circunstâncias da morte de Jesus, fielmente transmitidas pelos evangelhos (337) e esclarecidas por outras fontes históricas, para melhor compreender o sentido da redenção.
Parágrafo 1 - Jesus e Israel
574. Desde o princípio do ministério público de Jesus, fariseus e partidários de Herodes, com sacerdotes e escribas, puseram-se de acordo para lhe dar a morte (338). Por alguns dos seus atos (expulsões de demônios (339); perdão dos pecados (340) curas em dia de sábado (341); interpretação original dos preceitos de pureza legal (342): trato familiar com publicanos e pecadores públicos (343), Jesus pareceu a alguns, mal intencionados, suspeito de possessão diabólica (344). Foi acusado de blasfêmia (345) e de falso profetismo (346), crimes religiosos que a Lei castigava com a pena de morte por apedrejamento (347).
575. Muitas atitudes e palavras de Jesus foram, portanto, «sinal de contradição» (348) para as autoridades religiosas de Jerusalém, a quem o Evangelho de São João muitas vezes chama simplesmente «os Judeus» (349), mais ainda do que para o comum do Povo de Deus (350). Sem dúvida que as suas relações com os fariseus não foram unicamente polêmicas: são fariseus que O previnem do perigo que corre (351). Jesus louva alguns de entre eles, como o escriba de Mc 12, 34, e em várias ocasiões come em casa de fariseus (352). Jesus confirma doutrinas partilhadas por esta elite religiosa do povo de Deus: a ressurreição dos mortos (353) formas de piedade (esmola, jejum e oração (354) e o hábito de se dirigir a Deus como Pai, o caráter central do mandamento do amor de Deus e do próximo (355).
576. Aos olhos de muitos em Israel, parece que Jesus procede contra as instituições essenciais do Povo eleito:
– a submissão à Lei, na totalidade dos seus preceitos escritos e, para os fariseus, na interpretação da tradição oral;
– a centralidade do templo de Jerusalém, como lugar santo em que Deus habita de maneira privilegiada;
– a fé no Deus único, cuja glória nenhum homem pode partilhar.
I. Jesus e a Lei
577. Jesus fez uma solene advertência no início do sermão da montanha, ao apresentar a Lei dada por Deus no Sinai, quando da primeira Aliança, à luz da graça da Nova Aliança:
«Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição. Em verdade vos digo: Antes que passem o céu e a Terra, não passará da Lei a mais pequena letra ou o mais pequeno sinal, sem que tudo se cumpra. Portanto, se alguém transgredir um só destes mandamentos, por mais pequeno que seja, e ensinar assim aos homens, será o menor no Reino dos céus. Mas aquele que os praticar e ensinar, será grande no Reino dos céus» (Mt 5, 17-19).
578. Jesus, o Messias de Israel e, portanto, o maior no Reino dos céus, fazia questão de cumprir a Lei, executando-a integralmente até nos mais pequenos preceitos, segundo as suas próprias palavras. Foi, mesmo, o único a poder fazê-lo perfeitamente (356). Os Judeus, segundo a sua própria confissão, não puderam nunca cumprir integralmente a Lei sem violação do mínimo preceito (357). Por isso é que, em cada festa anual da Expiação, os filhos de Israel pediam a Deus perdão pelas suas transgressões da Lei. Com efeito, a Lei constitui um todo e, como lembra São Tiago, «quem observa toda a Lei, mas falta num só mandamento, torna-se réu de todos os outros» (Tg 2, 10) (358).
579. Este princípio da integralidade da observância da Lei, não só na letra mas também no espírito, era caro aos fariseus. Tomando-o extensivo a Israel, conduziram muitos judeus do tempo de Jesus a um zelo religioso extremo (359). E um tal zelo, se não se ficasse por uma casuística «hipócrita» (360), com certeza que prepararia o povo para esta inaudita intervenção de Deus, que será o cumprimento perfeito da Lei pelo único justo representante de todos os pecadores (361).
580. O cumprimento perfeito da Lei só podia ser obra do divino Legislador, nascido sujeito à Lei na pessoa do Filho (362). Em Jesus, a Lei já não aparece gravada em tábuas de pedra, mas «no íntimo do coração» (Jr 31, 33) do Servo, o qual, proclamando «fielmente o direito» (Is 42, 3), se tornou «a aliança do povo» (Is 42, 6). Jesus cumpriu a Lei até ao ponto de tomar sobre Si «a maldição da Lei» (363) em que incorrem aqueles que não «praticam todos os preceitos da Lei» (364); porque «a morte de Cristo foi para remir as faltas cometidas durante a primeira Aliança» (Heb 9, 15).
581. Jesus apareceu aos olhos dos Judeus e dos seus chefes espirituais como um «rabbi» (365). Muitas vezes argumentou, no quadro da interpretação rabínica da Lei (366). Mas, ao mesmo tempo, Jesus tinha forçosamente de Se confrontar com os doutores da Lei porque não Se contentava com propor a sua interpretação a par das deles: «ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas» (Mt 7, 28-29). N'Ele, era a própria Palavra de Deus, que Se fizera ouvir no Sinai, para dar a Moisés a Lei escrita, que de novo Se fazia ouvir sobre a montanha das bem-aventuranças (367). Esta Palavra de Deus não aboliu a Lei, mas cumpriu-a, ao fornecer, de modo divino, a sua interpretação última: «Ouvistes que foi dito aos antigos [...] Eu, porém, digo-vos» (Mt 5, 33-34). Com esta mesma autoridade divina, desaprova certas «tradições humanas» (368) dos fariseus, que «anulam a Palavra de Deus» (369).
582. Indo mais longe, Jesus cumpriu a lei sobre a pureza dos alimentos, tão importante na vida quotidiana judaica, explicando o seu sentido «pedagógico» (370) por uma interpretação divina: «Não há nada fora do homem que, ao entrar nele, o possa tornar impuro [...] – e assim declarava puros todos os alimentos – [...]. O que sai do homem é que o toma impuro. Pois, do interior do coração dos homens é que saem os pensamentos perversos» (Mc 7, 18-21). Proporcionando, com autoridade divina, a interpretação definitiva da Lei, Jesus colocou-Se numa situação de confronto com certos doutores da Lei, que não aceitavam a sua interpretação, muito embora garantida pelos sinais divinos que a acompanhavam (371). Isto vale sobretudo para a questão do sábado: Jesus lembra, e muitas vezes com argumentos rabínicos (372), que o repouso sabático não é violado pelo serviço de Deus (373) ou do próximo (374) que as suas curas realizam.
II. Jesus e o templo
583. Jesus, como antes d'Ele os profetas, professou pelo templo de Jerusalém o mais profundo respeito. Ali foi apresentado por José e Maria, quarenta dias depois do seu nascimento (375). Na idade de doze anos, decidiu ficar no templo para lembrar aos seus pais que tinha de Se ocupar das coisas de seu Pai (376). Ao templo subiu todos os anos, ao menos pela Páscoa, durante a vida oculta (377). O seu próprio ministério público foi ritmado pelas peregrinações a Jerusalém nas grandes festas judaicas (378).
584. Jesus subiu ao templo como quem sobe ao lugar privilegiado de encontro com Deus. O templo é para Ele a casa do seu Pai, uma casa de oração, e indigna-Se com o fato de o átrio exterior se ter tornado lugar de negócio (379). Se expulsa os vendilhões do templo é pelo amor zeloso a seu Pai: «Não façais da casa do meu Pai casa de comércio». «Os discípulos recordaram-se de que estava escrito: "O zelo pela tua casa devorar-me-á" (Sl 69, 10)» (Jo 2, 16-17). Depois da ressurreição, os Apóstolos guardaram para com o templo um respeito religioso (380).
585. No entanto, nas vésperas da sua paixão, Jesus anunciou a ruína deste esplêndido edifício, do qual não ficaria pedra sobre pedra (381). Há aqui o anúncio dum sinal dos últimos tempos, que vão iniciar-se com a sua própria Páscoa (382). Mas esta profecia pôde ser referida de modo deturpado por falsas testemunhas, quando do interrogatório a que Jesus foi sujeito em casa do sumo-sacerdote (383) e ser-Lhe lançada em rosto, como injúria, quando agonizava, pregado na cruz (384).
586. Longe de ter sido contra o templo (385) onde proclamou o essencial da sua doutrina (386), Jesus quis pagar o imposto do templo, associando a Si Pedro (387), que Ele acabara de estabelecer como pedra basilar da sua Igreja futura (388). Mais ainda: identificou-Se com o templo, apresentando-Se como a morada definitiva de Deus entre os homens (389). Por isso é que a sua entrega à morte corporal (390) prenuncia a destruição do templo, a qual vai assinalar a entrada numa nova idade da história da salvação: «Vai chegar a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai» (Jo 4, 21) (391).
III. Jesus e a fé de Israel no Deus único e salvador
587. Se a Lei e o templo de Jerusalém puderam ser ocasião de «contradição» (392) entre Jesus e as autoridades religiosas de Israel, o seu papel na redenção dos pecados, obra divina por excelência, foi, para essas autoridades, a verdadeira pedra de escândalo (393).
588. Jesus escandalizou os fariseus por comer com os publicanos e os pecadores (394) tão familiarmente como com eles (395). Contra aqueles «que se consideravam justos e desprezavam os demais» (Lc 18, 9) (396) Jesus afirmou: «Eu não vim chamar os justos, vim chamar os pecadores, para que se arrependam» (Lc 5, 32). E foi mais longe, afirmando, diante dos fariseus, que, sendo o pecado universal (397), cegam-se a si próprios (398) aqueles que pretendem não precisar de salvação.
589. Jesus escandalizou, sobretudo, por ter identificado a sua conduta misericordiosa para com os pecadores com a atitude do próprio Deus a respeito dos mesmos (399). Chegou, até, a dar a entender que, sentando-Se à mesa dos pecadores (400), os admitia no banquete messiânico (401). Mas foi muito particularmente ao perdoar os pecados que Jesus colocou as autoridades religiosas de Israel perante um dilema. É que, como essas autoridades justamente dizem, apavoradas, «só Deus pode perdoar os pecados» (Mc 2, 7). Jesus ao perdoar os pecados, ou blasfema por ser um homem que se faz igual a Deus (402), ou diz a verdade e a Sua pessoa torna então presente e revela o nome de Deus (403).
590. Só a identidade divina da pessoa de Jesus é que pode justificar uma exigência tão absoluta como esta: «Quem não está comigo, está contra Mim» (Mt 12, 30); o mesmo se diga de quando afirma ser «mais que Jonas,... mais que Salomão» (Mt 12, 41-42), «mais que o templo» (404); de quando lembra, a respeito de si próprio, que David chamou ao Messias o seu Senhor (405); de quando afirma: «Antes de Abraão existir, "Eu sou"» (Jo 8, 58); e ainda mais: «Eu e o Pai somos um» (Jo 10, 30).
591. Jesus pediu às autoridades religiosas de Jerusalém que acreditassem n'Ele, por causa das obras do seu Pai que Ele fazia (406). Mas tal ato de fé tinha de passar por uma misteriosa morte para si mesmo, a qual desse lugar a um novo «nascimento do Alto» (407), por atração da graça divina (408). Tal exigência de conversão, face a um tão surpreendente cumprimento das promessas (409), permite compreender o trágico desdém do Sinédrio, ao sentenciar que Jesus merecia a morte como blasfemo (410). Os membros do Sinédrio agiam assim, ao mesmo tempo por «ignorância» (411) e pelo «endurecimento» (412) da sua «incredulidade» (413).
Resumindo:
592. Jesus não aboliu a Lei do Sinai, mas cumpriu-a (414) com tal perfeição (415) que revelou o sentido último dela (416) e resgatou as transgressões contra ela cometidas (417).
593. Jesus venerou o templo, subindo a ele nas festas judaicas de peregrinação e amou com amor zeloso esta morada de Deus entre os homens. O templo prefigura o seu mistério. Quando anuncia a sua destruição, fá-lo como revelação da sua própria morte e da entrada numa nova idade da história da salvação, em que o seu Corpo será o templo definitivo.
594. Jesus praticou atos, como o perdão dos pecados, que O manifestaram como sendo o próprio Deus salvador (418). Alguns judeus, que, não reconhecendo o Deus feito homem (419) viam n'Ele «um homem que se faz Deus» (420), julgaram-n'O como blasfemo.
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Notas:
336. Cf. Lc 24, 27, 44-45.
337. Cf. II Concílio do Vaticano. Const. dogm. Dei Verbum, 19; AAS 58 (1966) 826-827.
338. Cf. Mc 3, 6.
339. Cf. Mt 12, 24.
340. Cf. Mc 2, 7.
341. Cf. Mc 3, 1-6.
342. Cf. Mc 7, 14-23.
343. Cf. Mc2, 14-17.
344. Cf. Mc 3, 22: Jo 8, 48: 10, 20.
345. Cf. Mc 2, 7; Jo 5, 18; 10, 33.
346. Cf. Jo 7, 12; 52.
347. Cf. Jo 8, 59; 10, 31.
348. Cf. Lc 2, 34.
349. CL Jo 1, 19; 2, 18; 5, 10; 7, 13; 9, 22 18, 12: 19, 38; 20, 19.
350. Cf. Jo 7, 48-49.
351. Cf. Lc 13, 31.
352. Cf. Lc 7, 36; 14, 1.
353. Cf. Mt 22, 23-34; Lc 20, 39.
354. Cf. Mt 6, 2-18.
355. Cf. Mc 12, 28-34.
356. Cf. Jo 8, 46.
357. Cf. Jo 7, 19; Act 13, 38-41; 15, 10.
358. Cf. Gl 3, 10; 5, 3.
359. Cf. Rm 10, 2.
360. Cf. Mt 15, 3-7; Lc 11, 39-54.
361. Cf. Is 53, 11: Heb 9, 15.
362. Cf. Gl 4, 4.
363. Cf. Gl 3, 13.
364. Cf. Gl 3, 10.
365. Cf. Jo 3. 2; Mt 22, 23-24. 34-36.
366. Cf. Mt 9, 12; 12, 5: Mc 2, 23-27; Lc 6, 6-9; Jo 7, 22-23.
367. Cf. Mt 5, 1.
368. Cf. Mc 7, 8.
369. Cf. Mc 7, 13.
370. Cf. Gl 3, 24.
371. Cf. Jo 5, 36; 10 25. 37-38; 12, 37.
372 Cf. Mc 2, 25-27; Jo 7, 22-24.
373. Cf. Mt 12, 5; Nm 28, 9.
374. Cf. Lc 13, 15-16; 14, 3-4.
375. Cf. Lc 2, 22-39.
376 Cf. Lc 2, 46-49.
377. Cf. Lc 2, 41.
378. Cf. Jo 2, 13-14; 5, 1.14; 7, 1.10.14; 8, 2; 10, 22-23.
379. Cf. Mt 21, 13.
380. Cf. Act 2, 46; 3. 1; 5, 20-21; etc.
381. Cf. Mt 24, 1-2.
382. Cf. Mt 24, 3: Lc 13, 35.
383. Cf. Mc 14, 57-58.
384. Cf. Mt 27, 39-40.
385. Cf. Mt 8, 4; 23, 21; Lc 17, 14; Jo 4, 22.
386. Cf. Jo 18, 20.
387. Cf. Mt 17, 24-27.
388. Cf. Mt 16, 18.
389. Cf. Jo 2, 21; Mt 12, 6.
390. Cf. Jo 2, 18-22.
391. Cf. Jo 4, 23-24; Mt 27, 51: Heb 9, 11; Ap 21, 22.
392. Cf. Lc 2, 34.
393. Cf. Lc 20, 17-18; Sl 118, 22.
394. Cf. Lc 5. 30.
395. Cf. Lc 7, 36; 11, 37; 14, 1.
396 Cf. Jo 7, 49; 9, 34.
397. Cf. Jo 8, 33-36.
398. Cf. Jo 9. 40-41.
399. Cf. Mt 9, 13; Os 6, 6.
400. Cf. Lc 15, 1-2.
401. Cf. Lc 15. 23-32.
402. Cf. Jo 5, 18: 10, 33.
403. Cf. Jo 17, 6.26.
404. Cf. Mt 12, 6.
405 Cf. Mc 12, 36-37.
406. Cf. Jo 10, 36-38.
407. Cf. Jo 3, 7.
408. Cf. Jo 6, 44.
409. Cf. Is 53, 1.
410. Cf. Mc 3, 6; Mt 26, 64-66.
411. Cf. Lc 23, 34; Act 3, 17-18.
412. Cf. Mc 3, 5; Rm 11, 25.
413. Cf. Rm 11, 20.
414. Cf. Mt 5, 17-19.
415. Cf. Jo 8, 46.
416. Cf. Mt 5, 33.
417. Cf. Heb 9, 15.
418. Cf. Jo 5, 16-18.
419. Cf. Jo 1, 14.
420. Cf. Jo 10, 33.
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