Revista Catolicismo
Judas não se tornou Apóstolo por vontade própria, mas pela Vontade de Cristo: "Não fui Eu que vos escolhi a vós doze? No entanto, um de vós é um demônio" (Jo 6, 70).
Caiu-me recentemente nas mãos um opúsculo intitulado Judas Iscariotes.[1] O personagem é muito conhecido e dispensa apresentações. A Semana Santa é a ocasião ideal para meditar sobre sua infame traição.
Pode ser que o leitor já se tenha deparado com algum Judas pelo caminho, ainda que revestido de outro nome. O caráter do traidor, porém, é sempre o mesmo, e a descrição desse caráter é que torna atraente o opúsculo que li e que desejo pôr em comum com o leitor. O contraste com o Iscariotes põe em realce também o modo de agir infinitamente santo de Nosso Senhor Jesus Cristo, contendo mistérios insondáveis para nós, criaturas de inteligência limitada. Feitas essas rápidas considerações, passo diretamente às citações.
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A fé e o afeto de Judas por Cristo eram, no começo, nobres e dignos. Também Judas se sentiu, então, entusiasmado por Cristo. Muitos doentes e possessos foram curados por ele, e muitas aldeias da Galiléia e da Judéia receberam dele as primeiras noções sobre Jesus.
É possível até que o Mestre tenha colocado Judas acima de alguns dos Doze, pois, segundo o testemunho do Evangelho, confiou-lhe o importante cargo de administrador da bolsa comum (cfr. Jo 12, 6). É provável que, por essa razão, alguns dentre os Apóstolos se sentissem preteridos.
Se não era mau por ocasião da sua vocação, deve ter-se tornado mau — quem seria capaz de crê-lo! — na companhia de Jesus. E é isto o que mais nos assombra: que um homem tenha podido fazer-se um demônio junto do próprio Cristo! No momento em que decide trair Cristo e no momento em que leva a cabo a traição, em ambas as vezes os Evangelhos dizem que Satanás entrou nele (cfr. Lc 22, 3 e Jo 13, 27). Quem abandona as alturas, como o Iscariote, cai pelo seu próprio peso nos mais profundos abismos.
Judas, o egocêntrico
O poder das trevas aliou-se, portanto, a Judas e serviu-se desse infeliz para levar a cabo um objetivo que excede em vileza toda a miséria humana; porque há pecados que não podem ser cometidos a não ser sob o influxo do inferno.
Como explicar essa inaudita transformação? Ninguém se torna amigo fiel ou traidor de Cristo de uma hora para a outra. Judas perdeu-se por se ter encerrado obstinadamente no seu próprio eu. Nada estava acima dos seus próprios pensamentos egoístas, e semelhante atitude era já uma traição ao Senhor, muito antes de se concretizar naquela venda infame.
O Senhor [vendo que muitos se afastavam dEle, após ter anunciado a Eucaristia] quis também colocar os Doze perante o dilema: Quereis vós também retirar-vos? Pedro exclamou, respondendo com comovida confiança: Senhor, a quem iríamos? Só Tu tens palavras de vida eterna. Judas, pelo contrário, remoeu-se no seu íntimo, sem no entanto se atrever a recriminar Jesus por ter renunciado ao reino [temporal] e destruído com essas palavras todos os sonhos de poder e de glória que o Apóstolo havia forjado para si mesmo. Judas ficou desiludido.
Essa permanência mal-intencionada [junto a Jesus] foi o começo da sua traição. Durante todo um ano, equilibrou-se nessa atitude perigosa e cada vez mais instável, compreendendo com clareza crescente que o Senhor não corresponderia às suas ambições terrenas.
Judas, o ressentido
Com um ressentimento cada vez mais infeccionado contra o Senhor, foi dando voltas ao seu plano diabólico, até colocar-se a si mesmo numa posição de ilicitude, e ao Mestre num plano de ilegalidade e de culpa.
Com um ressentimento cada vez mais infeccionado contra o Senhor, foi dando voltas ao seu plano diabólico, até colocar-se a si mesmo numa posição de ilicitude, e ao Mestre num plano de ilegalidade e de culpa.
O Mestre era bom; mais ainda, mostrava-lhe um grande afeto. Era impossível que não tivesse notado a terrível perturbação de que o seu Apóstolo padecia havia cerca de um ano, mas continuava a tratá-lo da mesma maneira: o seu olhar procurava-o amorosamente, como sempre, e, quando lhe pronunciava o nome, a sua voz continuava cálida e amável. Não quisera trazer a público as fraudes perpetradas por ele contra a bolsa comum. Quando Tiago e João tinham querido falar disso com o Mestre, Cristo fizera-os calar e não quisera revogar a confiança que depositava no ladrão.
[Quando Judas criticou Madalena, por estar ungindo os pés de Jesus com um bálsamo precioso] o Senhor replicara: Por que vos escandalizais desta mulher? Ela fez uma boa obra comigo (Mc 14, 7). Judas não pôde resistir a essa repreensão em público e, diabolicamente ferido, aproveitou o pretexto desse "esbanjamento reprovável" para enfim levar a cabo o que por tanto tempo deixara amadurecer no seu íntimo.
Judas, o insolente
Os príncipes dos sacerdotes, tomados de assombro, satisfação e júbilo, não regatearam quando um dos Doze — um dos Doze! — se apresentou diante deles com a proposta por que tanto tinham esperado. Trinta siclos de prata! Judas não tinha outra coisa a fazer senão indicar aos inimigos de Jesus o tempo e o lugar em que o Mestre se encontraria sozinho e isolado da multidão. Vendeu o Mestre muito abaixo do preço de um escravo!
[Na Santa Ceia, Nosso Senhor anuncia a traição. São João pergunta: Quem é? Jesus responde: É aquele a quem eu der o bocado que vou molhar. E, molhando o bocado, tomou-o e deu-o a Judas Iscariotes (cfr. Jo 13, 21-30)].
Como são admiráveis as disposições do Senhor! Aquele pedaço de pão oferecido a um comensal era tão comum nos banquetes, que não podia chamar a atenção; pelo contrário, era uma manifestação de afeto para com um amigo. Cristo não atraiçoa nem mesmo aquele que o atraiçoa. Não lança contra ele nenhuma imprecação, como as que tinha proferido dois dias antes no Templo contra os seus inimigos, nem o entrega ao furor dos outros Apóstolos, seus companheiros.
A insolência de Judas [vai ao ponto de perguntar] Porventura sou eu, Rabi? (Mt 26, 25). Cristo olhou-o como só Deus pode olhar, e respondeu-lhe serenamente: Tu o disseste. Todo esse diálogo entre Jesus, João e Judas passou despercebido dos convivas, ou pelo menos não foi compreendido por eles.
Judas, o apóstata traidor
Desiludido com Jesus, afagado pelos inimigos deste, ferido por uma repreensão e por fim desmascarado, Judas foi-se afundando cada vez mais no abismo, até tornar quase impossível o arrependimento.
O pecado do traidor chegou ao auge quando Judas atravessou a noite amena e alegre da Páscoa, docemente iluminada pela lua cheia, à frente de uma grande multidão, armada de espadas e varapaus (Mt 26, 47). Lucas observa que Judas os precedia (Lc 22, 47): a um apóstolo convertido em apóstata, tudo lhe parece pouco para demonstrar o seu novo ardor.
Logo que chegou, aproximando-se dEle, saudou-o dizendo-lhe: "Mestre!" E beijou-o (Mc 14, 44 e ss.; Mt 26, 48 e ss.). Nele, Cristo experimentou toda a vileza de que é capaz a alma humana; no fundo daquelas trevas [da alma de Judas], vê rompido o selo que trazia o Nome do Senhor, porque nenhum apóstata é capaz de desarraigar completamente esse Nome que, desde o momento do seu Batismo, traz gravado na alma para sempre.
Aproximou o seu rosto do traidor, do infame, e trocou com ele o beijo da paz. Após uns instantes de silêncio, disse-lhe: Amigo, a que vieste? E depois, como se reprimisse um soluço: Judas, com um beijo entregas o Filho do homem? (Mt 26, 50; Lc 22, 48).
[Já profetizara o Salmista:] Se a ofensa viesse de um inimigo, Eu a teria suportado; se a agressão partisse de quem me odeia, dele me teria escondido. Mas tu, meu companheiro, meu amigo íntimo, que te sentavas à minha mesa e comias comigo doces manjares! (Sl 54, 13-15). Mas tu...!
Mas ai daquele por quem o Filho do Homem será entregue! Melhor lhe fora a esse homem não ter nascido (Mc 14, 21).
[1].Otto Hophan, Die Apostel Judas Ischarioth, tradução de Roberto Vidal da Silva Martins, Editora Quadrante, São Paulo, 1996, 56 páginas.
Judas e São Pedro
No artigo acima, reproduzimos trechos de um atraente estudo[1] sobre o caráter do traidor Judas Iscariotes. O mesmo opúsculo em português traz também, como apêndice, uma elucidativa comparação entre o pecado de Judas e o de São Pedro[2], que nos pareceu interessante levar ao conhecimento do leitor, através dos trechos que abaixo reproduzimos.
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Essa advertência torna-se ainda mais forte, se nos lembrarmos de que não foi só Judas que traiu. Os outros Apóstolos também traíram o Senhor, embora de outro modo, e até o próprio Pedro, o Príncipe dos Apóstolos, traiu Cristo. Ele que tinha a missão de ser a rocha incomovível sobre a qual se deveria edificar a Igreja ao longo dos séculos, negou covardemente o Senhor.
Judas e Pedro. Duas histórias que nos colocam diante do mistério do mal, dos abismos de maldade que existem no coração de todo ser humano.
A traição de Judas
No início, Judas seguia Jesus com retidão. Havia na sua alma, como na dos outros Apóstolos, ambições humanas alheias à missão de Cristo e interesses pessoais mesquinhos, mas estavam num segundo plano; o que importava acima de tudo era colaborar com o Senhor.
No entanto, com o passar do tempo, essa situação foi-se invertendo: as ambições pessoais de Judas, não devidamente subjugadas à medida que ‘erguiam a cabeça', foram pouco a pouco ganhando terreno até que, em dado momento, o Apóstolo percebeu com nitidez que a proposta de Jesus não se coadunava em absoluto com elas. Então, em lugar de retificá-las, preferiu mantê-las e colocá-las em primeiro lugar na sua vida.
A partir daí foi-se desenvolvendo em sua alma um processo de infecção generalizada pelo câncer de um tremendo egoísmo. Seu coração foi-se endurecendo e distanciando aceleradamente de Cristo. A sua consciência foi-se embotando. Perdida a confiança em Jesus, passou a olhá-lo com olhos cada vez mais críticos, até chegar, após sucessivas decepções, a odiar Aquele a quem tanto admirara. Finalmente veio a traição vil.
Durante todo o tempo em que a alma de Judas se ia enchendo de trevas, Jesus não deixou de estimá-lo muito e de tentar ajudá-lo. Deu-lhe muitas oportunidades de arrepender-se do seu egoísmo.
Comenta São Tomás Morus que o Senhor "não o arrojou da sua companhia. Não lhe tirou a dignidade que tinha como Apóstolo. Nem lhe tirou a bolsa, e isso apesar de ser ladrão. Admitiu-o na última Ceia com os demais Apóstolos. Não hesitou em ajoelhar-se e lavar com as suas inocentes e sacrossantas Mãos os pés sujos do traidor, símbolo da sujidade de sua mente [...] Finalmente, no instante supremo da traição, recebeu e retribuiu o beijo de Judas com serenidade e com mansidão" [3].
A negação de São Pedro
Pedro, pelo contrário, nunca perdeu essa retidão interior. Começou a seguir Jesus num arranque abnegado de generosidade. No entanto, a sua natureza generosa e ardente era frágil, e Pedro, apesar de tantas advertências carinhosas mas claras de Cristo, preferiu ignorá-las presunçosamente. E foi essa presunção que o perdeu. O seu itinerário até a queda correu pela linha das atitudes de autosuficiência, das ‘desafinações' em relação ao espírito do Mestre, que a longo prazo apontavam para a infidelidade em situações extremas. E assim chegou à sua tríplice negação.
Pedro, tal como Judas, tinha uma visão demasiado humana da sua missão e do próprio Cristo. Não atribuía a devida importância à oração. Sem deixar de ser reto, chegou, por presunção, a tornar-se extremamente vulnerável.
As negações de Pedro chamam mais a atenção que a traição de Judas, porque, no caso deste último, é evidente que houve um lento processo de deterioração que preparou a queda ruinosa, ao passo que, no caso do primeiro, aparentemente, o tropeço chegou de repente.
Mas a verdade é que também no caso de Pedro houve um tempo de maturação da queda, um período suficientemente longo em que ele teria podido notar a aproximação do perigo e tomar as providências necessárias para afastá-lo.
Pedro poderia ter notado que, à medida que se aproximava o momento da morte de Cristo na Cruz, a perspectiva dessa morte, que Jesus já afirmara repetidas vezes ser absolutamente necessária, o vinha deixando cada vez mais perplexo e tristonho. Poderia ter notado que ia crescendo no seu coração a relutância em aceitá-la. Poderia ter reparado que essa relutância estava tornando difícil a sintonia com o Mestre, o diálogo profundo com Ele. Que desse modo se iam entorpecendo no seu coração os desejos de um seguimento incondicional de Cristo, abalando-se assim as bases da sua lealdade.
Poderia ter dado ouvidos ao Senhor quando Jesus o advertiu do perigo de sua defecção. Poderia, em suma, ter percebido que se estava afastando de Cristo, que o estava seguindo `de longe', tornando-se portanto cada vez mais fraco. Não o fez por presunção — confiava demais em si mesmo — e, por isso, chegado o momento da prova, encontrou-se sozinho e desamparado, sem a ajuda de Cristo e da sua Santíssima Mãe, com a qual poderia contar se tivesse crescido em humildade.
São Pedro, Judas e nós
Estamos, portanto, diante de duas modalidades de queda, ambas inquietantes.
A história de Judas adverte-nos para o perigo da falta de pureza de intenção que nasce do egoísmo. É muito comum que os nossos ideais mais elevados estejam misturados com intenções egoístas de avareza, vaidade etc.
Aconteceu com a maioria dos Apóstolos, que, embora quisessem honestamente colaborar com a instauração do Reino de Deus, tinham também pretensões menores de vaidade: quantas vezes não teve Jesus que corrigi-los por estarem discutindo sobre qual deles seria o maior, sobre postos de honra, sobre quem se sentaria à sua direita ou à sua esquerda!
Aconteceu também com Judas. Só que, nos outros Apóstolos, essas pretensões e as suas inevitáveis conseqüências más não levaram à ruína final; em Judas, sim. Porque os outros souberam combatê-las à medida que se iam manifestando, e Judas não se preocupou com isso. Deixou-se dominar por elas e, como conseqüência, corrompeu-se.
O que é realmente perigoso é a cegueira de uma consciência deformada. Só ela pode fazer que alguém acorde um belo dia e descubra, com amarga surpresa, que perpetrou uma terrível traição, que agiu como um canalha, como Judas. Todos podemos trair.
***Termina aqui a transcrição do opúsculo
Encerramos lembrando um comentário que o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira costumava fazer sobre a traição de Judas: "Se o traidor, após toda sua ignomínia, tivesse procurado Nossa Senhora para sinceramente pedir perdão, ele o teria obtido por meio dEla. São Pedro, pelo contrário, pediu perdão até o fim de seus dias, e por isso tornou-se um grande santo. Mas exatamente o que Judas não quis foi humilhar-se e pedir perdão."
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Notas:
1.Trata-se do opúsculo de Otto Hophan, intitulado Die Apostel Judas Ischarioth, tradução de Roberto Vidal da Silva Martins, Editora Quadrante, São Paulo, 1996, 56 páginas. Nosso artigo, intitulado Judas Iscariotes, foi publicado na última edição de Catolicismo.
2.Rafael Stanziona de Moraes, Judas e Pedro. Dispensamos as aspas de praxe, pois todos os textos são do autor do apêndice. Os intertítulos são nossos.
3.Nota do Autor do Apêndice: São Tomás Morus, A agonia de Cristo, comentário a Lc 22, 47-48.
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